segunda-feira, 27 de abril de 2009

Ele e outros homens - Jorge

Jorge não sabia muito bem como se esquivar das motos e dos retrovisores dos carros. O mulato vendia balas no farol desde que se conhecera por gente. Passara mais da metade de sua vida ali. A outra metade passava relembrando tudo o que vivia lá.
Filho de mãe solteira, sem pai conhecido, dividia as agruras e a comida com mais sete irmãos. Pra Jorge não era triste a vida. O triste era não ser amigo dela.
A rotina do rapaz era simples. Acordava antes do nascer-do-sol, colocava seu uniforme de trabalho ( uma peruca e um macacão com bolas vermelhas, amarelas e verdes), lavava o rosto, escovava os dentes e rompia a manhã com toda esperança de quem nasceu pra viver. Duramente vivia Jorge. Café-da-manhã, almoço, jantar, isso era raridade. Ou uma ou outra. Ele não se lembrava de um dia em que fizera mais de uma refeição.

O Palhaço

O macacão, presente de Dona Dinda, madrinha de Jorge, era companheiro do rapaz há perder de vista. Se bem, não era bonito. Era puído, uma manga tinha metade do comprimento da outra, e as cores... bem, as cores não se podia dizer " Nossa como vibram",no entanto apagavam o amarelo pálido do fundo e isto já e o bastante.
Trabalhar no farol é tarefa dura. Jorge bem o sabe. Mas menino como ele, criado e não-assumido pela vida aprendeu a se virar. O negro raquítico, de sorriso largo e de dentes brancos que envergonham a amarelice do macacão, é sabido da dureza. O crioulo foi moldado na miséria. Pra gente sofrida desde o começo, como Jorge, qualquer fim já é um ganho.

Os carros

No início da vida adulta ele era um alfabetizado-funcional. Ele escreve seu nome, lê e é muito ágil na hora do trôco, na hora do pagamento. O farol abre.

VERMELHO: O palhaço invade o mar de aço. As geringonças metálicas são assustadoras, mas ele não se intimida. A língua presa não o ajuda e ele faz por onde : 10 bala de caramelo a 1 real. Jorge não sabe, mas circula entre os prismas da evolução, da ganância, da modernidade. Saquinho de balas no retrôvisor. Madame vestida de carro francês olha e repugna o crioulo. E também tem o japonês, um negro como o nosso Jorge, e outros dentro dos carros parecidos comigo e com você. Somos reflectivos.
"Ô palhaço, ô muleque, quanto é que tá mesmo ?"
"É dez bala por um real só, moço."
" Vê dois saquinhos que as meninas tão pedindo."
As meninas são filhas de Jeremias, motorista de ônibus, que conseguiu realizar seu grande sonho: um carro popular em suaves prestações. Como se diz na ralé à perder de vista. Dentro do carro estão Pâmela e Luana, filhas do mais novo cliente de Jorge.
Por um momento o palhaço Jorge olha as meninas e se perde ao olhar Pâmela. A menina inda bem menina, quiçá tivesse doze anos, era grande demais pra própria idade. Era escura, de olhos amendoados e tinha um sorriso que atravessou aquele farol e a vida do vendedor de balas.

AMARELO : Jorge jamais fora amado, acarinhado. Sim, era esperançoso, mas não tinha incentivo da vida pra continuar nela. Sua criação em rua, em farol de avenida não lhe dera malícia. Malícia essa de homem, de macho. Muito pelo contrário, o descaso das circunstancias criaram nele uma alma inocente que o fizera permanecer um menino até o seu último dia.
Pâmela fitou Jorge com a mesma inocência que ele a observou. Se perderam por ali, naqueles milésimos de segundos, e a vida ganhou sentido pra Jorge e a mulher nasceu em Pâmela.
"Pega seu trôco aí neguinho." E menino não se movia. Talvez tivesse parado o mundo.Pra Jorge o sinal realmente parára.

VERDE: "Qual é o seu problema, hein garoto?"
Um ballet começava a se criar e a os sacos de balas dos outros carros partiam. Todas as balas dançariam longe daquele lugar. Não sabia nem Jorge, nem a menina o que se acontece numa hora dessas. De tão forte que era o laço nascido, o fio os levára numa forma superior. A forma mais pequenina que engradece.
Jeremias acelerou, o palhaço de feliz que estava, enfureceu-se. Jorge batia no vidro, Jeremias acelerava, as meninas gritavam e o transitou não parou. O mundo não parou. Numa arrancada mais forte o pai da menina conseguiu perder o vendedor de balas de vista. Suspirou, reclamou à menina, criticou-a, se encheu de soberba.

As bolas do macacão

O mesmo garoto de sempre. Um corpo franzino, daqueles que pedem socorro a cada toque. O palhaço só queria sorrir, vender, comer, dormir. O palhaço aquele dia amou. Um lago quente e vermelho se formava envolta dele. Desesperado, só chorava e esperava que alguém o livrasse daquilo. Num minuto ele tinha um mundo á mão, noutro já tinha muito menos que aquela vida maldita. Ele tinha fé em uma santa e rezou pra ela. Aquela oração martelava a cabeça dele todas as noites. Melhor fora recorrer a virgem. O macacão já se mesclava num tom róseo, medonho. Uns gritos surgiam em meio ao caos do palhaço rodeando a poça de sangue quente, muito quente , que ele derramára alí.
As bolas amarelas e as verdes, se perderam, se misturaram, como os olhares do palhaço e da filha do motorista. Nunca mais eles seriam os mesmos. Ele então talvez nem o 'mesmo' ainda poderia ser. O caso curioso que me pois a escrever é sobre o que viera a acontecer com as bolas vermelhas.

Bolas Vermelhas

Como que numa centelha de vida, num sopro irônico de deus pro menino, o macacão ganhara uma face bela diante da desgraça. Não mais se via verde, amarelo, desbotado, puído. O negro vestiu-se de raiz africana- talvez o único momento da vida em que tinha legitimidade- e a roupa de palhaço era manto, vestidura em cor de guerra.
Não demorou muito e pela sangria desatada, o menino palhaço morreu. Nunca em toda a cidade, os terreiros tocaram seus tambores tão altos. Dizem desde então que naquele dia nasceu São Jorge, homem santo, forte guerreiro.


* Meu agradecimento à Rubem Fonseca que me inspirou a criar este e outros contos que virão. Tomei como ideia seu livro "Ela e outras mulheres". Vale a pena .

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