terça-feira, 26 de maio de 2009

As Horas

Ele tinha sempre uma mania de falar das horas:

"São duas da tarde e ainda não fiz isso." "São oito da noite e não comprei aquilo. "
O tempo dele era aquele conjunto de fragmentos fomentados por um ponteiro arbitrário.Desleal.

E se tornava escravo de cada gominho perdido e deixado pra trás. Pra ele o comando das horas ficava à cabo do cuco. Talvez fosse um beija-flor, talvez um joão de barro. Eu garanto que deveria ser um desses passaros de países nórdicos...ou talvez um bicho de estimação de lord inglês, tamanha frieza e pontualidade.
A ele se faziam presentes os avisos do pássaro. O bicho era em resina e mesclava um azul com verde dando um tom metálico a ave. De fato a beleza era grande e a compania que o bicho de mentira fazia também.

Para que não se perdesse no tempo empunhava um relógio de tamanho médio e cor discreta. Deveriam ser neutros o tom, os números e os ponteiros. A exigência com a qual o pequeno aparelho levava a vida dele era exímia.
De passo em passo se ouvia o tic-tac possessivo do acessório. De passo em passo se corria em frequencias cerebrais uma agitação e uma excitação. :“Estou em cima da hora” E mais substantivos que se complementavam num prelúdio de caos emocional:” Reunião. Chefe. Fome. Tensão.”

E mais um dia se passava e àquela pressão toda se esvaia num copo de café-com-leite assistindo o último desenho animado de sua série preferida “O máscara”.
Não tinha um perfil sensível, tampouco parecia infantil. Aquele era um traço que ficara de não se sabe da onde.

Cuco-Cuco-Cuco (!!!!!!!!!!)_

Não, não deveria ver desenhos. Era uma perda de tempo inexorável, coisa desnecessária de gente que não tem o que fazer.Melhor mesmo era pensar no seu discurso de amanha. Uma banca de executivos, uma gravata chumbo apertada e os dedos do pé uns sobre os outros. Ele demonstrava sua tensão espremendo os dedos do pé. Não que o sapato fosse apertado. O problema ia além. Ele era orgulhoso demais pra suar ou ficar ruborizado.

Dormiu uma noite tranquila até. Novamente o regulador o acorda. Ele desperta, desajeitado e sem vontade. No rosto a expressão é vazia, é como se o verbo “anular” tivesse rosto.O rosto era dele. Um homem anulado, um homem coisificado, controlado por um sistema que media sua própria vida num ciclo matemático falho.

Passos arrastados. Neste dia não há prelúdio de nada. Nada que lembre o homem nele. Ele apenas se veste, um zumbisnessman, ou melhor, um 'sobrevivo'.

Anda pelas ruas apressado. O contato com outros seres-humanos é escasso, desgastado. Existem pra ele a garçonete da lanchonete, sua secretária, a mãe insuportável e distante e um motorista de taxi . Motorista este que o leva quando seu comandante preso ao pulso demonstra algum atraso irreparável de mínimas fatias de tempo. Quiçá sete, oito minutos.

E à morte ele é tão desinteressante. Ela jamais o espreitou...”um homem como ele, desprezível, não é merecedor de qualquer acontecimento sobrenatural”.

A reunião vai as tantas. O relógio utilizou todos os seu espaço de tempo naquele dia. O ponteiro saiu cansado de trabalhar e governá-lo.

O acessório empunhado estava enfraquecendo e talvez fosse só a bateria.
O homem não percebeu e como de praxe, esperou que o Cuco garantisse seu despertar e que o marcador de pulso confirmasse a hora.
O cuco gritou, cucou, ardeu em cólera e o homem permanecia estático em decúbito dorsal. Já era a prévia de um laudo de morte. Como num sono de bêbado ele levantou uma das pestanas – ensaiava um abrir de olhos- e visualizou o mostrador do relógio. Inda marcavam 4 horas a mais de sono.Dormiu.

Cuco- Cuco- Cuco (!!!!!!!!!!!!!!!!!)

Algumas horas depois- se dirigiu até o santuário que governava sua vida, Cuco azul- esverdeado- metálico, meio lord, seu controlador. Havia algo de errado. Os ponteiros do relógio de pulso estavam incoerentes. O sol ardia e os ponteiros marcavam inda 3:00 a.m.
Não foi o cuco que o traira. A bateria do relógio de pulso havia acabado e ele não se apercebeu. No homem nasceu um sentimento. Era uma raiva de si mesmo. Ele caíra do pedestal egoísta que se colocara.

Se irritou, esbravejou, lançou o relógio da mão esquerda ao chão. Uma cena maravilhosa de se ver. Algo no homem o fazia humano, mesmo que fosse uma revolta ridícula como aquela.

Já havia perdido o horário do trabalho. O café acabara em sua casa. Decidiu sair pra comprar. Não tirou as meias tampouco penteou o cabelo. Remelas, baba, cabelos bagunçados, um furo na meia. Sentou-se na praça florida em frente à sua casa – que jamais fora antes- abriu a tampa do café. Bebeu. O relógio ficara no chão da sala e o sol não marcava as horas. O sol – ele percebeu- marcava dias. Permaneceu ali como quem jamais iria embora. Talvez não fosse.

Um comentário:

Flávio disse...

OK.


Tenho outra visão dos passáros agora.